XIX Colóquio Habermas e X Colóquio de Filosofia da Informação

Os Colóquios serão realizados nos dias 19 a 21 de setembro de 2023. Neste ano o maior desafio dos brasileiros continua sendo o resgate da democracia, que nos devolva a dignidade, fortaleça a cidadania, reduza as desigualdades e garanta bem-estar social. É uma tarefa prática para a qual devemos orientar o pensamento crítico. O tema central dos Colóquios é “Democracia em reconstrução: justiça social e sustentabilidade ambiental”.

O tema da crise da democracia, particularmente a tendência de crises de legitimidade em sociedades capitalistas avançadas, faz parte do pensamento de Habermas ao menos desde a publicação de sua obra Crise de legitimidade no capitalismo tardio (1971). Contudo, quando aborda esse tema na década de 1970 a ênfase se encontra nas tendências de crise inerentes ao processo de desenvolvimento do capitalismo como resultado da globalização crescente das relações comerciais entre os países e o consequente enfraquecimento do Estado em cumprir certas tarefas como a garantia dos direitos fundamentais, o que gera entre outras coisas a perda da lealdade das massas e déficits de legitimidade. Nesse momento, Habermas apenas começa a esboçar os traços gerais da teoria do agir comunicativo, particularmente com a introdução da distinção entre trabalho e interação em Técnica e Ciência como ‘Ideologia’ (1968). 

A publicação de Teoria do agir comunicativo (1981) introduz os conceitos articulados de sistema e mundo vivido, e a visão do processo de crescimento da racionalidade instrumental, através da colonização do mundo vivido pelo sistema e os consequentes déficits de legitimidade que esse tipo de processo acarreta. A crescente influência da racionalidade com relação a fins em diferentes esferas da vida humana rouba cada vez mais o espaço do mundo vivido e resulta em patologias sociais e déficits de legitimidade. A solução consiste em freá-la (no modelo de esfera pública inicial da metáfora das barreiras) e aumentar a influência do agir comunicativo através do uso público da razão na esfera pública informal buscando impactar as decisões na esfera política ou pública formal pelos representantes eleitos (no modelo da esfera pública modificado a partir da década de 1990). A maneira como esse novo modelo de esfera pública opera é desenvolvido melhor nas obras de filosofia do direito.

Em Facticidade e Validade (1992) Habermas reformula alguns aspectos da relação entre direito e moral desenvolvida nas Tanner Lectures, reconstrói o sistema de direito moderno e apresenta uma concepção de circulação de poder que implica uma democracia radical que ele denomina de democracia deliberativa aplicando conceitos fundamentais da teoria discursiva da democracia como política deliberativa, procedimentalismo democrático, esfera pública e sociedade civil. Esta concepção combina traços da democracia representativa e da democracia direta e procura superar as limitações e incorporar as vantagens das concepções liberal e republicana de democracia.

A concepção de democracia habermasiana é baseada num sistema de circulação de poder entre a esfera pública formal e informal e desse modo a esfera pública serve como critério normativo da legitimidade das normas de uma sociedade. Já em Mudança estrutural da esfera pública (1962), Habermas identifica uma diminuição do potencial crítico da esfera pública como modelo normativo com o surgimento da propaganda e da indústria cultural. 

Recentemente Habermas se devota novamente ao tema da esfera pública e seu papel na democracia deliberativa com a obra Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a democracia deliberativa (2022) e busca identificar os problemas ocasionados ao modelo de esfera pública como critério normativo resultantes do surgimento das novas mídias digitais, em particular pela transformação de qualquer pessoa em potencial autor nas novas mídias digitais.  Habermas acredita que esta questão se equipara à invenção da imprensa por Gutenberg no século XV, que transforma todas as pessoas em potenciais leitores e abre espaço para difusão da informação de modo amplo.

O surgimento das mídias digitais tem, ao menos em tese, um grande potencial emancipatório, uma vez que ter o direito a voz na esfera pública parece uma excelente estratégia para incluir os interesses de todos os afetados nos debates a respeito de questões de justiça básica e de relevância política e social em geral. Não obstante, as novas mídias digitais, em vez de colaborar com o potencial emancipatório da esfera pública, têm tido o efeito, se não contrário, ao menos ambivalente. Ou seja, têm permitido a manifestação de interesses em lugares do mundo em que era difícil fazer isso, mas também têm permitido a ascensão de grupos políticos ultraconservadores, que potencializam sua influência na esfera pública e até mesmo na eleição de seus representantes ao redor do mundo. 

A nova configuração da esfera pública através do emprego das novas tecnologias digitais tem facilitado a difusão dos discursos conservadores, negacionistas da ciência, antidemocráticos e contra as políticas de proteção do meio ambiente. Isso representa um desafio que um modelo discursivo, como é o caso do modelo de democracia deliberativa habermasiana, precisa investigar para garantir qualidade mínima de conteúdo nas colaborações na esfera pública informal.  Como impedir que as novas tecnologias digitais resultem em guetos comunicativos que minam o potencial emancipatório da esfera pública informal, que apenas transmitem de maneira acrítica informações parcialmente ou completamente falsas, e criar condições para aumentar o potencial inclusivo e crítico das novas mídias no processo de tomada de decisões democrático? Algumas pessoas ou grupos sugerem algum tipo de regulamentação das tecnologias digitais no sentido de responsabilizar os potenciais autores pelas consequências da difusão de informações inverídicas. Outros sugerem o estabelecimento de formas de pré-identificação automática de conteúdos supostamente inverídicos nas próprias mídias digitais ou até mesmo a criação de mecanismos que permitem verificar automaticamente na internet a veracidade de informações. 

Um dos efeitos da predominância dos discursos conservadores na esfera pública informal, através das novas tecnologias digitais, é, por exemplo, a crise dos programas de imunização obrigatória e o enfraquecimento da proteção do meio ambiente devido, em parte, pelo enfraquecimento da autoridade do conhecimento científico, pelos negacionismos.  Em Técnica e Ciência como Ideologia, ao considerar a crítica de Herbert Marcuse contra a técnica e o conhecimento científico, Habermas se opõe à postura extremamente negativa de Marcuse contra o progresso científico e seus efeitos negativos.

É importante lembrar que em outros momentos Habermas também se manifesta contra aquele cientificismo que aceita como conhecimento legítimo apenas aquele que se origina dos métodos científicos das ciências naturais. A posição de Habermas se situa entre a apologia acrítica da ciência e o negacionismo anticientífico. É preciso reconhecer aspectos positivos e negativos no progresso científico e as hipóteses a respeito dos efeitos da ação humana devem ser considerados com seriedade e sobriedade. O modelo normativo de esfera pública na concepção de democracia deliberativa exige enfrentar os desafios sociais, políticos, econômicos e ecológicos, através de um esforço cooperativo de construção de soluções no espaço público.

O uso intenso e mal-intencionado de novas mídias digitais tem facilitado danos significativos nas discussões do uso da ciência como base das políticas públicas, e também na própria dinâmica da tomada de decisão democrática, interferindo nas eleições em países democráticos, através da difusão sistemática e sem filtros de notícias falsas (fake News). As notícias fraudulentas têm sido usadas por partidos conservadores, que atacam abertamente até mesmo o sistema de votação por maioria (como foi o caso do ataque às urnas eletrônicas no Brasil).

A derrota da direita ultraconservadora nas últimas eleições e a eleição de partidos e líderes comprometidos com valores e procedimentos democráticos trazem de volta a urgente pauta de como reconstruir e fortalecer o modo de governo democrático. Após os retrocessos nas instituições democráticas e comprometidas com o progresso científico, muito é preciso rever e repensar. Por exemplo, a educação inclusiva tem sido atacada através de reformas curriculares que deixam de priorizar áreas do saber importantes à manutenção das instituições democráticas como as ciências humanas e as artes.

Os Colóquios representam mais uma oportunidade de emprego do agir comunicativo para, de maneira cooperativa e inclusiva, discutir e buscar caminhos para a reconstrução da cultura democrática brasileira bastante abalada nos últimos anos pelo crescimento das posições conservadoras e para o desenvolvimento de soluções para as crises. Enfrentar as crises se torna cada vez mais urgente, diante da dimensão dos obstáculos para reverter questões como as emissões de carbono, o desmatamento das florestas e o negacionismo científico.

Os interessados em participar e contribuir com as discussões podem enviar suas propostas para o XIX Colóquio Habermas e X Colóquio de Filosofia da Informação através do e-mail coloquioshabermas@ibict.br. A submissão de resumos deve ser feita entre 01 de junho e 19 de agosto. Os artigos apresentados devem ser entregues completos para publicação em Anais até 30 de outubro.

Rio de Janeiro, 30 de março de 2023

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